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Islândia: A crise levou o dinheiro, mas não a criatividade



O lixo diminuiu um quarto, em Reiquiavique. As prateleiras dos supermercados deixaram de ter tantos produtos importados. Algumas famílias começaram a cultivar quintais. E a tricotar camisolas. Os Range Rovers agora chamam-se game-overs. Consumir? "Isso é tão 2007..." Os bancos faliram, as famílias entraram em bancarrota, o Estado estremeceu. Veio o FMI, mas o sistema de proteção social não mudou. Democracia: é a receita dos islandeses para sair da kreppa, o nome islandês da crise. Os banqueiros vão ser julgados. O anterior primeiro-ministro vai ser acusado. A Constituição está a ser revista por cidadãos comuns. A pequena ilha nórdica quase foi ao fundo, mas está a reinventar-se.

O sorriso de menina de Salvör esconde-lhe a determinação. Veste uma saia acima do joelho, botas altas, um casaco rosa. Tem os olhos castanhos, uma raridade nesta confluência genética de íris claras e olhos rasgados. Filha de um ex-governador do Banco Central, é professora de Ética, diretora do departamento, na Universidade da Islândia. "Nunca me interessei por política", diz, a rir, no seu novo gabinete, que ocupa desde novembro de 2010.

Ela é uma das 25 pessoas "comuns", cidadãos dos 18 aos 91 anos, eleitos pelo povo para reescrever a Constituição do país. Foi a revolução que a levou para a política. É preciso entrar em bancarrota para que um país se dê conta da falta que faz uma professora de Ética.

Salvör, 48 anos ("quarenta e qualquer coisa... ai... sim, quarenta e oito"), foi apanhada pelo turbilhão. Os bancos faliram, o Governo não teve dinheiro para os salvar. Nacionalizou-os, mas não assumiu as maiores dívidas. Vieram as histórias de compadrio, corrupção, o buraco negro de milhares de milhões de euros, a súbita e inesperada fragilidade das pessoas. A pobreza, o desemprego. "Era preciso dar uma resposta", explica Salvör.

Dois meses depois da crise, desencadeada em outubro de 2008, e de a revolução se ter instalado nas ruas de Reiquiavique a capital, com milhares de islandeses dispostos a tudo para conseguir uma solução para os seus problemas, Salvör integrou a Comissão Especial de Inquérito que reconstituiu a história da kreppa islandesa, o mais extraordinário e abrupto crash da história económica do mundo, parafraseando o Prémio Nobel da especialidade, Paul Krugman.

Eram apenas seis, na Comissão. Três especialistas em Ética, dois advogados e um economista. E muito já diz esta composição... Salvör leu todos os documentos, vasculhou a incrível história de banqueiros como Jon Asgeir Johnnesson, o maior acionista do banco Giltnir, o primeiro gigante a falir. Um multimilionário que vivia do crédito do seu próprio banco (e de outros). Tinha um iate de luxo, um avião privado e dois apartamentos de 25 milhões de dólares, em Manhattan, Gramercy Park.

Em 2 400 páginas, a Comissão de Salvör contou todas as histórias. E a população não fez orelhas moucas. O relatório todo (investigado e escrito entre janeiro de 2009 e março de 2010) foi lido, por atores, no Teatro Municipal de Reiquiavique. A leitura era retransmitida pela rádio. Mas há um resumo possível, numa página: a "teia" de relações entre os banqueiros, os reguladores e os responsáveis políticos. Uma espécie de organograma da catástrofe, com linhas retas e ligações sinuosas. Foi essa a imagem que ficou, até porque três dias depois de ser conhecido, o relatório ficou submerso pela erupção do vulcão Eyjafjallajökull, em 21 de março de 2010. "Não lixem a Islândia. Podemos não ter dinheiro, mas temos fogo", diz uma das T-shirts expostas na livraria IDA, em Reiquiavique.

Foi naquela comissão que nasceu a mais surpreendente das ideias: "É preciso repensar a República, tornar a discussão sobre as responsabilidades do poder mais democrática. É preciso empenhar as pessoas", explica Salvör, com uma expressão terna, enquanto caminha por uma sala ampla, dividida em cubículos numerados de 1 a 25, o local onde se reúnem os representantes do povo mandatados para rever a Constituição, pela primeira vez, desde que a Islândia se tornou independente da Dinamarca, em 1944.

Há ali pescadores, agricultores, professores, funcionários públicos. Cidadãos, entre os 18 e os 91 anos, que se propuseram para reescrever a lei fundamental do país, depois da crise. Salvör faz parte dos 25. "Foi a primeira vez que me candidatei a qualquer coisa", diz, a rir. Concorreram 552 islandeses. "Era uma experiência. Ninguém sabia como fazer... Os candidatos não sabiam como apresentar o seu programa. Os media não sabiam como proceder, não podiam dar espaço a mais de 500 candidaturas..." Resultado: "Usei o Facebook. Mandei mails a todos os meus contactos. Fui construindo uma rede", recorda. No dia 27 de novembro do ano passado, Salvör foi escolhida, numa eleição nacional inédita. E, na primeira reunião dos 25, elegeram-na para presidir aos trabalhos. Tem agora pouco mais de dois meses para escrever a nova Constituição islandesa, que terá de ser sufragada pelo atual Parlamento, e pelo próximo que resultar das futuras eleições legislativas (uma salvaguarda que pretende tornar a lei mais importante da Islândia imune às conjunturas políticas).
Acusar os responsáveis

Está a nevar, mas os rapazes caminham pela rua de T-shirt, e as raparigas de minissaia. O vento faz os farrapos de gelo rodopiar pelo ar, mas, ao longo da estada, no meio de quilómetros de desoladores campos de lava, há fumarolas e vapor de água fervente a subir em colunas direitas. A paradoxal Islândia não se deitou no divã do psicanalista depois do colapso financeiro. A kreppa não é o fim. Pode ser, até, um recomeço.

Embora seja a casa que Bryndis e Johannes queriam, a sala está despida de luxos. Despojada. Paredes brancas, quatro fotografias pequenas penduradas, dois sofás, um cadeirão e uma mesa que enchem de pequenos pães redondos, acabados de cozer, manteiga, café. "Desde que não piore, acho que aguentamos", diz a terapeuta da fala, de 37 anos, enquanto adormece o filho, Eysteinn, de 2 anos, no colo. O mais novo dos três filhos do casal nasceu depois do crash. E já não conheceu "o País mais feliz do mundo" (segundo o ranking do jornal inglês The Guardian) em que os irmãos, Gudmundur e Sigtryggur, de 12 e 4 anos, tiveram a sorte de nascer. Eysteinn é alérgico a derivados do leite e, também, ao mais comum dos substitutos lácteos, a soja. Agora, no supermercado, faltam os gelados, o leite e a manteiga que tolera comer. As importações caíram, dizem as estatísticas.

O marido de Bryndis, Johannes, 38 anos, é professor de Linguística, especialista em sagas medievais islandesas - um género literário que perpetua os feitos sanguinários dos primeiros colonizadores desta ilha do Atlântico Norte, a meio caminho entre a Europa e a América, encostada ao Ártico. "Antes, quando éramos mais jovens, esperávamos que o nosso tempo chegasse. Que a prosperidade viesse. Agora não...", diz, com os cotovelos apoiados nos joelhos, mãos na cara. Mas não é assim que acaba uma saga. A desilusão não parece paralisar a "geração parva" da Islândia.

Johannes saiu à rua, no frio inverno de 2008, de frigideira na mão, como milhares de outros islandeses. Fez parte da revolução. Exigiu transparência, democracia, soluções para os seus problemas. E vá algum português atrever-se a explicar a um islandês que "tristezas não pagam dívidas"...

Salvör Nordal, 48 anos, deve ter-se cruzado com Johannes, na praça Austurvöllur, a praça da revolução, fronteira ao edifício novecentista do Parlamento, o Althingi (o primeiro edifício islandês a ser construído com casa de banho). Os islandeses reencontraram-se ali, com o seu destino. O país que liderava o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, de repente, via-se num espelho deformado. Caminhando sobre o gelo frio e quebradiço. Como qualquer Argentina ou Zimbabué, endividado até ao fundo dos bolsos.

De um momento para o outro, os islandeses foram à procura dos culpados, apontaram o dedo. Mas também procuraram soluções. Houve quem inventasse um "Ministério das Ideias". E houve, também, uma reunião inédita da Thjodfondur, uma espécie de assembleia geral do povo, com mil representantes que debateram os "valores" que queriam para um novo país sair da crise.

Da comissão de inquérito saíram duas investigações. Uma judicial, aos banqueiros, que procura responsabilidades criminais. Foi a magistrada francesa, Eva Joly, que montou as bases da Procuradoria-Especial para os Crimes da Banca, liderada pelo islandês Olafur Thor Hauksson, que já deteve para interrogatório e mandou arrestar bens dos principais banqueiros que dominavam o sistema financeiro do país, antes do colapso.

Dali saiu, também, e pela primeira vez na História da Islândia, uma investigação especial à responsabilidade política. O Supremo Tribunal islandês, constituído por peritos em leis e políticos nomeados pelo Parlamento, vai reunir-se em breve para julgar o ex-primeiro-ministro Geir Haarde, acusado de incompetência e má gestão. Um terço dos funcionários da agência estatal de regulação passaram a trabalhar para os bancos que deviam fiscalizar. O Governo promoveu, até à véspera da falência, os feitos dos "novos vikings" (o cognome dos banqueiros). O Estado falhou.
'Deus abençoe a Islândia'

Os Range Rovers estão a envelhecer. Os velhos edifícios de madeira, cobertos com chapas de zinco coloridas, vão manter-se no seu lugar. Não hão de nascer arranha-céus envidraçados nos quarteirões mais característicos de Laugavegur, a avenida central de Reiquiavique, como desejavam os banqueiros. Em vez de lojas Armani, abrem apenas modestos estabelecimentos como o da Associação de Tricotadeiras da Islândia ou lojas de roupa em segunda-mão.

E os todo-o-terreno que luziam de novos estão a caminho de integrar o parque automóvel mais velho da Europa. Chamam-lhes, agora, os "game-overs". Ainda são muitos, mas já não representam a maior concentração do mundo por habitante, como até há dois anos. Rolam, matraqueando os pregos que trazem incrustados nos pneus, pela neve de Laugavegur, no passeio quotidiano de fim de semana. Thetla reddast! "No final, tudo vai correr bem."

Bryndis não repete esta crença islandesa nos amanhãs que cantam. O melhor que lhe sai, enquanto atrás de si, do lado de fora da janela da sua sala branca, a neve cai sem parar, é "a vida continua". Foi aqui, nesta sala, acabada de comprar, no outono de 2008, que percebeu. "Tudo colapsou..." Estava a pintar as paredes de branco, com Johannes, o seu marido, e tinha o rádio ligado. No início, tudo corria bem.

O número 4 da rua Gladheimar, uma vivenda geminada de dois pisos, materializava um sonho antigo. Uma sala grande, espaço para os livros de Johannes, quartos para os filhos, Gudmundur e Sigtryggur (Eysteinn haveria de nascer, em 2009). A casa velha tinha apenas 68 m2, e ainda rendeu um lucro de 37 mil euros. Mas o rádio, naquele 8 de outubro de 2008, tinha más notícias para Bryndis e Johannes, enquanto pintavam a sala.

O primeiro-ministro Geir Haarde, líder do Partido da Independência, conservador de direita, que ganhou todas as eleições legislativas na Islândia desde 1946, está a discursar em direto. No final, diz uma frase que deixa Bryndis, Johannes e o país inteiro de olhar parado, em suspenso: "Deus abençoe a Islândia." De lá para cá, o casal concentra-se em "não permitir que a situação afete as crianças". Deixaram de ir comer fora, "cinema só uma ou duas vezes por ano". Alugaram um quintal, onde cultivam "saladas, cenouras, batatas". Para pouparem no supermercado, sim, mas também para "passar às crianças o valor da terra".

A frase de Haarde deixou os islandeses perplexos. Einar Mar Gundmundsson está em Copenhaga a falar sobre a sua obra literária e recebe a mensagem. "Deus abençoe a Islândia." Mete-se num avião para Reiquiavique, no dia seguinte. Thór Saari está no seu gabinete da OCDE, na Universidade de Reiquiavique, e vê a expressão preocupada de Haarde, na televisão. Diz: "O homem parece fora de si... Que discurso é este?" Raghneidur está grávida, sentada no sofá da sua sala, em repouso, e liga para o marido Ólafur. "O que é isto? O que se passa?" Lilja Mosesdóttir veio para Reiquiavique, a macrocéfala capital, que concentra quase metade da população, com um doutoramento em Regulação Financeira e a promessa de um contrato na Universidade da Islândia. Aos 48 anos, esta economista deixou a sua carreira universitária no Norte do país para ouvir, incrédula, a funcionária da Universidade dizer-lhe que o contrato não será assinado. Não há dinheiro.
De manifestante a deputada

Os bancos faliram. Foi como se uma praga do Velho Testamento atingisse a economia islandesa: o Giltnir, o Kaupthing e o Landsabanki, juntos, valiam dez vezes o Produto Interno Bruto do país. Como peças alinhadas de um dominó, as casas desvalorizaram-se, em média 30% (a de Johannes e Bryndis perdeu 31 mil euros do seu valor, em três dias), ao mesmo tempo que os empréstimos subiam (20%, no mínimo). A inflação aumentou e arrastou os empréstimos bancários para máximos históricos, que se manterão para sempre, a menos que uma vaga de deflação, muito improvável, corrija a subida. O Governo desvalorizou a coroa islandesa para absorver o impacto, mas isso não ajudou nada a vida de quem tinha empréstimos em moeda estrangeira (ienes, euros, dólares ou francos suíços). Os preços subiram. Os salários perderam valor. Quase metade das empresas faliu. E o contrato de Lilja foi-se, no turbilhão. A professora universitária passou a integrar a mais inconcebível das novas estatísticas islandeses: 9% de desempregados, num país que sempre vivera em pleno emprego.

Johannes fez como Lilja, Thór, Einar Már e milhares de outros. Pegou numa frigideira da sua cozinha nova e veio para a rua. Bater em tachos e panelas foi a forma que os islandeses encontraram para protestar contra esta espécie de apocalipse que lhes trouxe o destino. O destino e um grupo pequeno de banqueiros e políticos.

Hoje, dois anos e meio depois da "revolução das frigideiras", Lilja recebe-nos à porta do Althingi, o Parlamento islandês. É deputada.

Não há detetores de metais nem polícia. O funcionário trata a deputada pelo seu primeiro nome. E Lilja mostra-nos como viu, do lado de fora, o que agora vê por dentro. Durante as manifestações, os deputados hesitavam em cruzar o passadiço de vidro que liga o velho edifício ao novo anexo onde se situam os gabinetes. "Houve quem atirasse pedras, mas os vidros são à prova de bala..." Com uma voz pausada e suave, Lilja Mosesdóttir conta como passou de manifestante a eleita do povo: "A economia colapsou em três dias. As pessoas tornaram-se ativas. Muito ativas... Deixei as minhas pesquisas académicas e fui ler tudo o que havia sobre políticas de reação à crise." Na pequena sala de sessões do Althingi, as paredes são verdes e azuis. As cadeiras estão tão juntas que nenhum deputado se pode levantar, sem pedir licença ao colega do lado. Sentam-se aqui 63 eleitos, uma representação à medida deste país de 320 mil habitantes. Os lugares são rotativos. Os partidos não mandam na distribuição das cadeiras. Cada lugar é sorteado, anualmente, o que faz com que Lilja, que começou por integrar a bancada dos Verdes de Esquerda, e agora é independente, possa ter como vizinhos deputados da Aliança Social-Democrata, ou do Partido da Independência, ou do Partido do Progresso (ruralista, de direita), ou do Movimento, a nova formação que emergiu dos protestos de 2008.
Humor na 'fortaleza de marfim'

Thór Saari é o presidente do Movimento. Mas esse também é um cargo que roda, todos os anos. O Movimento é, aliás, um partido com os dias contados, explica Saari: "Temos um programa de três pontos: aprofundar a democracia; resolver o problema das famílias endividadas; e acabar com o desemprego. Ao fim de dois mandatos, se conseguirmos cumprir o nosso programa, acabamos. Se não conseguirmos, acabamos também", ri-se Thór que, tal como Lilja, é economista, especialista em dívida, e trocou as sebentas pela política, no calor da revolução de 2008. Trabalhava para a OCDE, em Reiquiavique, e já tinha sido quadro do Banco Central islandês e do Instituto de Gestão da Dívida. Encontrou-se com a rua. "Conhecemo-nos todos aqui", conta Thór Saari. "Passámos aqui seis dias e seis noites, sem sair, até que o Governo se demitiu. Uma revolução pacífica, na rua, no inverno, na Islândia... Ninguém pensava que fosse possível. Mas foi." Entre o dia 8 de outubro (quando Bryndis pintava a sua sala e o primeiro-ministro disse "Deus abençoe a Islândia") e o dia 6 de janeiro de 2009, data em que Haarde se demitiu e convocou novas eleições, a praça Austurvöllur foi o verdadeiro Parlamento. Primeiro, surgiram as frigideiras e o protesto sem programa, o choque puro e simples. Depois, fez-se um cordão humano, mais simbólico que ameaçador, à volta do Althingi, para impedir os deputados de entrar. A seguir, houve quem hasteasse uma bandeira da cadeira de supermercados Bónus (um porquinho sorridente) no mastro da bandeira nacional - porque essa cadeia pertence ao principal vilão islandês do momento, Jon Asgeir Jhanesson, o tal milionário a crédito. À medida que se iam conhecendo os contornos da falência dos bancos, e da promiscuidade entre a alta finança e a política, houve quem passasse à ação direta: o carro do primeiro-ministro foi apedrejado, os banqueiros foram atingidos com ovos, as suas casas foram pintadas de vermelho.

Thór chegou ao Parlamento, "a fortaleza de marfim", como lhe chama, no dia 25 de abril de 2009, e, com ele, uma maioria de esquerda, uma coligação entre social-democratas e Verdes de Esquerda. O Governo é liderado por Jóhanna Sigurdardóttir, social-democrata de 68 anos, lésbica. A aliança que apoia o Governo é frágil, e acaba de resistir, por apenas dois votos, a uma moção de censura, no Parlamento. Thór Saari e Lilja Mosesdóttir votaram para que o Governo caísse.

No Althingi senta-se, também, o antigo responsável ministerial pela banca. "Arrasta-se pelas paredes, calado. É um tipo simpático, mas, depois do que aconteceu, não pode voltar a ser um político digno de confiança", observa Saari.

O Movimento diz-se "acima do espetro", nem de esquerda nem de direita. E Thór garante que não é só isso que o separa dos políticos tradicionais. "Quando vim para aqui, estava a preparar um doutoramento em Filosofia. E reparo, todos os dias, que os políticos não pensam em termos de certo ou errado. Pensam na dicotomia possível versus impossível. Nós não somos políticos." A política islandesa foi tomada por não-políticos. Jon Gnárr, por exemplo, era um punk-rocker e comediante, famoso pelas suas rábulas na televisão. Quando fundou o Melhor Partido (um nome que deve render bons direitos de autor), ninguém o levou a sério. Quando ganhou, com 34% dos votos, a Câmara de Reiquiavique, ninguém pensou que se mantivesse lá por muito tempo. Quando desfilou, vestido de Rainha de Inglaterra, na parada gay de 2010, muitos acharam que estava acabado. E quando, na semana passada, se recusou a receber o comandante de uma embarcação militar alemã, e declinou a autorização para que o navio (que transportava um helicóptero de busca e salvamento que seria emprestado à Islândia) lançasse âncora no porto principal da capital islandesa, os esgares multiplicaram-se. Gnárr é um "anarco-situacionista" que faz política a rir, no meio do "teatro do absurdo" que, nas suas palavras, é a política do país.
Lápis contados

Absurdo. A megaloja de materiais de construção Bauhaus está pronta há dois anos, ali a dois passos de Reiquiavique, mas nunca chegou a abrir. Na principal autoestrada que sai para o Norte, Fellshlid Mosfellssdeit era o sítio onde as pessoas soltavam os cães para um passeio pelos campos. Vieram os bancos e as construtoras e nasceram os arruamentos. O alcatrão negro está impecável. As rotundas distribuem as ruas. Mas não há destino. Só alcatrão e rotundas e postes de eletricidade. Os lotes de terreno ladeiam esta cidade sem casas. Uma grua ficou ali, esquecida, entre as placas da Remax com o "vende-se" agora menos apelativo do negócio imobiliário.

"O setor da construção foi dizimado, em 2008", explica Thorolfur Mathíasson, diretor do departamento de Economia da Universidade de Reiquiavique, no seu gabinete, onde há um quadro cheio de rabiscos com gráficos de curvas acentuadas. Ao contrário da construção, as pescas e a energia estão a trazer para cima os indicadores da Islândia.

A atividade vulcânica é aproveitada para fornecer água quente a todas as casas (a água fria nem sequer tem contador doméstico). E, também, para fazer funcionar as gigantescas fundições de alumínio, exploradas por multinacionais americanas, que rivalizam com a pesca, no topo das exportações islandesas.

Energia foi aquilo que o assunto Icesave retirou, na opinião de Mathíasson, ao país para sair, ainda mais depressa, da crise. O caso arrasta-se, depois de, por duas vezes, em referendo, os islandeses terem recusado o acordo estabelecido entre o seu Governo e a Inglaterra e a Holanda. O Icesave era uma filial online do Landsbanki, que faliu, em outubro de 2008. Cerca de 400 mil depositantes britânicos e holandeses ficaram com o seu dinheiro congelado (cerca de 5 mil milhões de euros, no total). O Reino Unido aplicou a sua Lei Antiterrorista para forçar a Islândia a pagar. E, como não teve êxito, resolveu adiantar o dinheiro (como o Governo de Haia) do seu próprio orçamento, enviando a fatura para Reiquiavique. O Governo islandês procurou negociar um pagamento faseado. Mas o Presidente da República (ver entrevista) não assinou o acordo, levando o assunto a referendo. A população rejeitou aquela solução.

Como consequência, a Islândia não pode pedir dinheiro emprestado nos "mercados". Tem de viver com empréstimos bilaterais (China, Polónia) e com o empréstimo do FMI, negociado em 2008.

O principal negociador do FMI na Islândia foi o mesmíssimo Poul Thomsen, o dinamarquês de olhos azuis que aterrou em Lisboa há poucas semanas. Lilja Mosesdóttir reuniu-se com ele e considera-o "muito bem preparado" e até "permeável às reivindicações do povo". Na Islândia foi assim... "Em Portugal, também pode ser, se as pessoas lutarem pelo que querem", aconselha Lilja.

Mathíasson também considera "justa" a abordagem do FMI. "Impuseram uma redução do défice, mas não estabeleceram condições para os cortes. Isso acontece, talvez, porque o FMI não tem de convencer o eleitorado, como tem a chanceler alemã, Ângela Merkel..." Na Islândia, os cortes orçamentais preservaram o sistema de proteção social. No hospital de Bryndis, agora, há que "pensar duas vezes antes de fazer uma fotocópia". Os lápis estão contados, sim. Fecharam serviços públicos (hospitais e escolas), mas não houve cortes nos apoios sociais, nem privatizações. Pelo contrário, o welfare islandês foi elogiado pelo FMI, e até cresceu, nestes últimos anos (ver caixa). Há pressões para privatizar as empresas energéticas, mas o Governo opõe-se e, garante Sälvor Nordal, a futura Constituição vai defender que a propriedade dos setores essenciais (como a energia) seja pública.

Mesmo assim, o país está a crescer economicamente. "Há uma resiliência silenciosa da economia", explica Mathíasson.
Portugueses e islandeses: as diferenças

Talvez esta "resiliência silenciosa" esteja nos genes do povo, também.

Paulo Cardoso vive em Reiquiavique desde 1997. É um dos pouco mais de 600 portugueses registados na Islândia (já foram cerca de mil). Foi estudar. Apaixonou-se por uma islandesa. Casaram. É especialista em sistemas informáticos para a banca, mas continua a frequentar pós-graduações e mestrados (Relações Internacionais, Gestão). Compara, assim, os dois povos que tão bem conhece: "A população, aqui, é muito ativa. Os portugueses toleram muito... Aqui, não há tanta tolerância como em Portugal." Esta impressão faz sentido aos olhos de uma islandesa com o trajeto de vida inverso ao de Paulo. Gudlaug Run Margeirsdóttir estudou em Portugal, licenciou-se em Literatura, em Coimbra. Apaixonou-se por um português. Casaram. Só regressou, de vez, a Reiquiavique em 2007. E vê assim as diferenças entres estes dois pequenos povos, com um acentuado "complexo de inferioridade": "Os islandeses são menos complacentes. No dia a dia, os portugueses são mais críticos. Os islandeses são mais reservados. Em Portugal, pode dizer-se que 'isto é uma porcaria' e continuar a gostar de viver assim. Parece que os portugueses têm medo de ser um pouco mais agressivos. Às vezes, pergunto-me por que os portugueses não agem mais em vez de falarem tanto..." Gudlaug é tradutora literária. Traduziu para português o Nobel islandês, Halldór Laxness, autor do romance Gente Independente, que caricatura a obstinação e o tradicionalismo rural dos islandeses. Traduziu, também, o mais celebrado dos autores contemporâneos, Einar Mar Gudmundsson.

Einar vive nos arredores de Reiquiavique, numa vivenda a meia encosta de uma montanha. Tem um anexo, de madeira, ao lado da casa, onde trabalha. As paredes estão forradas com lombadas. Há livros numa mesa enorme de madeira. Há originais datilografados pelo chão. E um Saramago traduzido para islandês numa das prateleiras altas. "Jantámos juntos, uma vez", recorda Einar, enquanto nos serve café por um termo.

Einar fez quatro discursos, no improvisado palanque da praça da revolução. Sempre que falava, lia. Na primeira vez, estava a seu lado o dirigente sindical dos eletricistas, Gudmundur Gunnarsson, pai da cantora Björk. Entrou, a fundo, na revolução. Integrou comités de debate. Reuniu-se com especialistas. Foi um dos rostos da organização dos protestos. E continuou a escrever. O seu Livro Branco, entre o ensaio e a ficção, é o primeiro relato da crise. E foi formando convicções. "Isto não é uma questão judicial, é uma questão moral. Não tenho qualquer esperança nos inquéritos aos banqueiros ou ao primeiro-ministro." Viu "felicidade" nas pessoas que consigo discutiam. E novos valores: "O consumismo deixou de ser o mais importante. Agora, por toda a cidade, há gente que não se conhecia e que partilha ideias e projetos."

O lixo diminuiu um quarto, em Reiquiavique. Mas aumentaram as doenças relacionadas com o stresse: ataques cardíacos, AVC. Os doentes afásicos de Bryndis não podem ser sujeitos a qualquer tipo de conversa sobre bancos e política, porque "isso torna a terapia mais difícil, se existe stresse".

Mas há coisas que nunca mudam. O cartão de crédito é indispensável em qualquer bolso de islandês. Paga-se a crédito a cerveja que se bebe na discoteca, o táxi, o restaurante, o supermercado. Isso é "tão 2007", diz a expressão crítica, inventada para afastar os fantasmas do passado.

"Aprendemos devagar", ri-se Ragnheidur Birna Bjornsdóttir, 36 anos, especialista informática da Segurança Social. Na sua casa, a crise não foi sentida como na maioria dos lares islandeses. Ólafur, o marido, de 46 anos, gestor, explica porquê: "Sempre soube que os bancos não são nossos amigos. Estão a tentar fazer negócio. Não posso confiar cegamente neles." Quando os bancos faliram, o casal amortizou a hipoteca e pôde seguir com a vida em frente. Mesmo que a sua expressão se carregue, ao falar da corrupção endógena "nesta pequena sociedade em que toda a gente se conhece", Ólafur mantém o humor. E Ragnheidur cita a frase que dá alento, mesmo que o frio gele os ossos e a dívida se avolume, thetta reddast, "no fim, tudo vai correr bem".

Afinal, riem-se, à mesa da sua sala, nos arredores da capital, "talvez ainda sejamos a nação mais feliz do mundo..."

in Revista Visão, Paulo Pena
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